Carlos Campaniço (n. 1973, Moura)
construiu um extraordinário universo literário, onde cintilam personagens
memoráveis.
“Os demónios de Álvaro Cobra”, editado
pela Teorema, é um livro que merece toda a atenção dos leitores e da crítica
literária.
Medinas, a fictícia aldeia alentejana onde
habita a família Cobra, só tem uma porta de entrada e outra de saída. Nela se
entra pela primeira página do livro, dela se sai pela última página. Não há
mapa que a indique.
Dentro dessa aldeia de pagãos, novos cristãos
e judeus, o importante peso da igreja católica na moral é inferior à
superstição, aos costumes e aos mitos ancestrais. Por lá passam um anarquista
que ensina a escrever e a ler, uma prostituta, dona de um bordel, que deseja
casar as suas “meninas” com os homens mais ricos, uma cadela que adivinha o
tempo, um pássaro que canta, sem nunca errar, em sincronia com a hora exacta e
grifos e mais grifos…
Enquanto visita esse maravilhoso ambiente
criado por Carlos Campaniço, o leitor vai conhecendo as estranhas
peculiaridades de cada membro da família Cobra, principalmente de Álvaro.
“ (...) aquela era uma família insólita: o
marido com suas singularidades inusitadas e suas coleiras de epítetos; a
bisavó, quem sabe, a mulher mais velha do mundo; a cunhada, doente com febre
toda uma vida; e a sogra com duas mãos desiguais.”
A história de “Os demónios de Álvaro
Cobra” é de abnegação, sofrimento, de derrotas e de vitórias. É uma história
sobre o peso do destino e a (in) capacidade para o construir.
A pergunta essencial para a compreensão
deste romance cedo se impõe:
Até quando aguentará Álvaro Cobra tanta
dor?
O leitor tem, nas suas mãos, um romance de
personagens. A narração vai apresentando várias peripécias que tanto podem
provocar tristeza ou alegria; serem violentas ou ternurentas, fatalistas ou de
esperança. O principal objectivo desses acontecimentos é provocar uma atitude,
um gesto, uma palavra, que permita ao autor/leitor assistir a determinado
comportamento.
Carlos Campaniço não deixa “pontas
soltas”. Tudo está lá por alguma razão. Mais cedo ou mais tarde, o leitor
entenderá o objectivo de determinado acontecimento.
A realidade imposta pelo visível e
tangível é manipulada de forma coerente e credível.
É inevitável a referência ao realismo
mágico. Neste aspecto, o autor parece seguir os mesmos caminhos de Garcia
Márquez (Medinas em vez de Macondo), Riço Direitinho (características de
algumas personagens de “breviário das más inclinações”), ou de alguma
literatura nórdica.
O trabalho lexical é muito relevante. Os
regionalismos estão presentes em abundância. O próprio autor faz questão de o
mencionar.
“ Até cento e oitenta e duas palavras,
capturadas ao regionalismo local, que não coabitavam no seu léxico da Língua
Portuguesa, eram berberismos e arabismos falados apenas em Medinas. Mencionou
como exemplo, abrindo os braços à multidão, o nome da praça onde estavam
reunidos.” Pág. 94
“Os demónios de Álvaro Cobra”, obra
vencedora do Prémio Literário de Almada 2012, é um livro marcante devido à
capacidade do seu autor em criar e descrever, com muito equilíbrio, um ambiente
singular onde habitam personagens que provocam empatia e estranheza no leitor.
O leitor não se esquecerá de Álvaro Cobra.
Mário Rufino
Sem comentários:
Enviar um comentário